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O cão que rebolava e outras coisas

[Escrito em meados da primavera de 2010]


[Incrível é descobrir o verde depois de seis meses de branco, em Abril]

Então eu tive que ficar em pé. Depois da conferência, eu sentia que eu tinha perdido aquela energia protetora. Eu andava nos ônibus pela cidade, e ninguém me lançava o olhar acusador ou curioso de espécie única, brasileira. Agora eu sentia que, depois de conferências demais, eu já tinha sido descoberta. E aquele pensamento de achar que todos os tipos aleatórios de pessoas nunca saberiam que cruzaram, nessa vida, com uma brasileira, já tornara-se duvidoso.
Na última semana, tive três conferências. De repente eu sou uma pessoa muito interessante e as pessoas querem me ouvir.
Sem nenhum objetivo, anda pelo centro comercial. Compro meias, calcinhas com tema Rússia (uh?), adesivos de matrioshkas para pregar em ovos para a Páscoa que se aproxima. Não sabia o quanto da minha dignidade e identidade ainda sobravam depois desse domingo.
Elena, a coordenadora que me estendeu a insanidade, ainda naquela manhã me falara sobre o crime na Rùssia. E agora que eu vejo esse Senhor bêbado se aproximando talvez chegue a concordar com ela que o crime aqui é sempre relacionado com alcoolismo.
No começo do século XX houve uma conferência para resolver o tal problema. Ainda acontecem conferências desse tipo, o que quer dizer que o problema existe e custa apenas seis reais a garrafa de vodka.
Comparando com o crime no Brasil, no entanto, tudo isso chega a ser uma coisa muito doce e mansa. Entre drogas e tráfico de armas, o alcoolismo parece a melhor das mazelas. Mas quanto às drogas, não tenho certeza, ainda.
Sentada debaixo de uma árvore em algum dia quando ainda não estava frio demais, ou seja, há algum tempo, em um acampamento, vejo esses dois garotos cheirando algum pó. Eles perceberam que eu olhava, e como que usando de desculpa para falar com a brasileira, apresentaram-se. Eu não disse “prazer”, apenas perguntei “por que a cocaína de vocês não é branca?”, no final das contas, era tabaco, e eles me fizeram tocar umas músicas brasileiras, entre o velho explicar a vida além do futebol e do samba.
Então o senhor bêbado não está mais se aproximando, vou pegar minhas meias e ir para casa. O celular toca.
Mas não foi só isso, os três garotos do acampamento me chamando para ir beber no próximo final de semana, fiquei indagando, sem saber se é só juventude, ou alcoolismo.
“Dentro de uma hora”, respondi a Tanya, que me perguntava que horas eu iria para a academia. Era só uma estimativa.


[Em Fevereiro me juraram que estávamos na primavera]

Os algodões-doces se misturavam no azul anil. Tudo se misturava num céu de primavera. De ter cruzado o oceano e os fusos horários e se encher do sentimento em português de saudade, o desafio dos poetas. Camões pode ter morrido tentando. Notícias do mundo de lá, que agora vinham no meio de comunicação que é a voz da minha avó.
Hoje é domingo, pé de cachimbo, o cachimbo é de ouro, que deu no besouro, o besouro é valente, que deu no tenente, o tenente era fraco, caiu no buraco, o buraco era fundo, acabou-se com o mundo.
Minha vó cantava, em alguma parte do salão oval da minha mente, de vestido rosa, assim como eu a vi pela última vez, em Teresina, o termômetro indicando 32 graus, eu dentro do ônibus e olhando pela janela, e ela de vestido rosa.
Talvez eu nem devesse estar ouvindo vozes, afinal.
E o que era alegria e céu limpo, transforma-se em neve e irritação. Dois passos mais e eu entro pela porta da academia.
“Essa vida que nós levamos”, falei ao encontrar com a Tanya na academia, “é uma vida de semi-deuses”, sobre por que diabos nos botam em conferências e por que diabos russos se surpreendem que nós falamos russos se isso é só uma obrigação.
A verdade é que as pessoas sempre esperam a burrice de você, mas se você chega mostrando algo além de burrice, então já é motivo para surpreender um público. Era como se eu tivesse escalado o Everest. Talvez aprender russo não seja tão diferente. no fim do meu caderno havia desenhado um Everest, na última folha, talvez seja isso mesmo. E realmente, a última vez que eu havia checado, apenas um pequeno grupo de pessoas havia realmente chegado ao topo do Everest.
O meu pé me dizia que a minha joanete poderia me transformar num curupira. Como a idéia me repugnava, pus os sapatos logo.
“Talvez esse seja o sentimento de chegar ao topo do Everest”, Tanya concluiu, ficando vermelha, roxa e amarela levantando um peso, “talvez seja esse o sentimento de chegar ao topo do Everest, em russo”.
Viver a vida sob o alfabeto cirílico parecia estranho de fora, mas para quem tinha chegado ali ao topo, se não fosse desse jeito, não faria sentido. Alguns sentimentos não se traduzem.
Há tanto de cultura dentro de uma língua que a existência da profissão de tradutor de qualquer sorte é uma negação. Talvez tenham traduzido a palavra “mir” que significava “mundo” e “paz” ao mesmo tempo, do título de Tolstoi errado. “Guerra e mundo” ao invés de “Guerra e paz”. Guerra, paz, mundo...
O mundo lá fora, impossível passar um inverno russo sem sentir falta de verão brasileiro.
“Escrevi uma carta ao meu pai”, cortou a minha linha de pensamento, Tanya.
E eu sabia que existia ainda esse romantismo incondicional no ato de escrever cartas, mas já tinha inventado o e-mail...
“Ele não tem computador”.
“Ele mora em uma caverna, também?”, falei, da bicicleta. Eu estava terminantemente proibida de correr, jogar futebol, lutar karatê, dançar balé, andar na ponta do pé como eu fazia até os sete anos de idade, e tudo que usasse as extremidades do pé. Eu ia levar esse estilo de vida ao túmulo. Pedalar até a morte.
“Toda essa coisa,” continuei, “de aparência e estoque de gordura, talvez nós devêssemos viver medievalmente, artesanalmente, vamos,” desafiei, “e me diga um homem das cavernas que era acima do peso. Talvez nós nunca devêssemos ter evoluído, afinal, e ter abandonado essa vida de caçar carne e viver em cavernas”.
“Eu iria caçar frutas, então”.
Por um minuto, palavra, esqueci que ela era vegetariana. Eu não conseguia sentir pena de algo que fora burro o suficiente para deixar-se matar, pelo contrário, botava curry e brindava à carnificina.
“Mas você não comeria seu próprio cachorro”, disse Tanya, era o argumento terminal de qualquer vegetariano.
“E não me venha com esse argumento, eu também não comeria um parente meu, porque eu não preciso, eu vou ao supermercado e eles me dão esse monte de carne já morta e saborosa, eu não preciso matar meu cão ou um parente”.
Ainda na bicicleta, pedalando rápido e indo para lugar nenhum, planejávamos um acompanhamento para vinho para levar no trem para a próxima viagem, doze horas, na Segunda-feira.
Esse garoto estava em pé no meio da sala há algum tempo. E ele não queria estar ali. Ele nos olhava e lançava aquele mesmo olhar que nos julgava semi-deuses por falarmos outra língua. Talvez, pelo corpo magricela ou por achar que não era merecedor de dividir uma sala com semi-deuses, como que perguntasse a Zeus se poderia sentar dois minutos na sua nuvem, foi embora, magricela, desapontado.
“No seu país não é normal perdir desculpa quando se esbarra em alguém?”, quem dizia isso era um ser duas vezes maior que eu e a Tanya juntas, com um “Bound by Honour” tatuado na cabeça careca. No entanto, ele era estúpido em toda a sua existência. Nazistas russos eram estúpidos em toda a sua existência, por simplesmente quererem existir. Então vocês ganham uma guerra contra os nazistas e depois de algumas gerações estão atuando no papel errado. Você está fazendo isso errado.
Então um estúpido cruza a minha vista hoje. Um idiota careca tatuado, sendo estúpido em todo aspecto da própria existência e tatuagens. A verdade é que eu estava mais perto dele e quem tinha esbarrado no mal-comido fora a Tanya. Disse que eu não tinha entendido, mas na verdade não tinha acreditado. Ele repetiu. Olhei para a Tanya... Eu ri, balancei a cabeça. As vezes a vida te bota em um caminho que é cheio de bosta para pisar, e isso é uma merda, o que resta é ir pisando na bosta e rir das cócegas que a bosta faz entre os dedos. Continuei rindo e olhando para a minha alemã. Um riso que dizia “you may not share my intellect, which might explain your disrespect”.
"Eu não defendo e nem abomino, eu não tenho absolutamente nenhuma opinião sobre isso", virei para a Tanya depois de alguns minutos de silêncio e dores musculares, "mas eu sei que o ódio a americanos existe e eu não posso negar".
O estúpido tatuado e nazi viu que falávamos em inglês e só por isso quis mijar para garantir o terreno. Isso acontece com freqüência: nem todo mundo na Rússia acha que a II nem a Guerra Fria acabaram. E qualquer dos assuntos pouco me interessa, a minha nacionalidade me diz que eu nunca estive em uma guerra e que eu nunca vou entender o sentimento de heroísmo ou rancor ou a necessidade de um exército.

[Simpatia russa, we haz it (totalmente contagiante)]

"Aquele cara", continuou, "aquele cara, é um estúpido e eu deveria chutar as bolas deles, mundo estúpido que acha que nós somos americanas só porque falamos em inglês, mundo estúpido que julga sem realmente o direito".
Não acredito na definição de nacionalidade. Eu acredito na existência de culturas, não na de nacionalidade. Nacionalidade é um papel. Sair na rua e ser julgada por causa de um papel? Melhorem as suas ideologias. Eu nunca poderia ser uma diplomata, sou muito suspeita com as minhas próprias idéias fixas.
No caminho para casa, cruzei com o cachorro que pegava o ônibus no outro dia, o reconheci pelo rebolado, e dessa vez ele fez os cálculos errados e achando que entrava pela porta do ônibus, fora esmagado pela frente do mesmo. Achei que aquilo deveria ter me comovido, mas aquele cão não tivera uma chance. Vida de cão. Ele tinha que ganhar as ruas a cada minuto, e a vida já era questionável com o esforço que se faz dentro de quatro paredes... Uma pequena multidão se formou em volta do cachorro do rebolado na parada de ônibus. Tudo aquilo era tão patético porque todos agiam como se importassem. Questionando se a total liberdade de cão era um presente de vó, ou um presente grego, chegamos ao fim da linha.
"Are you from America?", ouvi de algum lugar do ônibus, lógico que não era na minha direção, olhei para a Tanya e ela repetiu o que a mulher tinha dito. Por que ela estava falando comigo? Achei que as pessoas deveriam me odiar porque achavam que eu era dos Estados Unidos.
Guardei minha carteira e virei para ela.
"No, I'm brazilian, and thanks for being the only nice person that has ever talked nicely to me in a bus", lembrei do estúpido na academia e de toda a violência gratuita vinda das babushkas [idosas] nos ônibus.
Fui o caminho inteiro conversando com aquela mulher. Ela era professora de inglês, e eu não consegui ficar brava com ela por dizer "America" ao invés de "USA", o que normalmente me irrita muito. Ela me perguntou do clima, de como eu falava russo, de como ela tinha morado na Alemanha.
"I'm leaving now, it was a pleasure talking to you. Do svidania"
Ela sorriu.
Saí do ônibus, desviando uma poça d´água.
“E aqui nós nos separamos”, disse a Tanya, quando cheguei a esquina da minha casa.
Sentada na poltrona, pensando que eu deveria cortar as unhas, pensando que somos todos filhos de Roma, que ser um vira-lata é... Adormeço.
Vi minha vó dando aquele adeus de vestido rosa e adormeço. Era mais fácil ser expectadora daquele mundo de sonhos a ser protagonista daquele mundo real, acordado e atento e que te julga. Vi o cachorro rebolando pela última vez e minhas cortinas-retinas se fecharam.
Ter um filho, arranjar um trabalho, ter pedra nos rins, divorciar-se, comprar um carro esporte, e eu mal podia sair ilesa em um Domingo... Tudo se misturava. Era um mundo grande, lá fora.
E lesada, pois que seja lesada, havia sobrevivido um domingo, antes de todo mundo no Brasil - nunca me canonizaram, fuso-horário. Adormeci, os meus pés de curupira riam de mim, uma pilha de meias e calcinhas novas fazia sombra em cima da cama.
Porque hoje é Domingo, acabou-se com o mundo...

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