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A independência do Brasil e a independência da poesia brasileira

Estou sentada aqui com uma bandeijinha de café-da-manhã e são 22:32 da noite, quando lembrei de que tinha me prometido postar hoje e não amanhã, que está programado para acontecer em uma hora e meia. Tinha prometido falar do livro dos poemas brasileiros, "Os cem melhores poemas brasileiros do século", que me encantou as tardes e a sanidade. Li-o gradualmente, dosado. Tem doses de boniteza que só se absorve gradualmente. Olha, e só confirmo o que eu sempre dizia quando detalhava as funções das línguas que eu falo: o português é língua para poesia. Nasceu assim, traçado, predestinado para versos. O que me intrigou logo ao abrir o livro foi não conhecer o organizador e seguidamente não achar nenhuma nota no próprio livro sobre Italo Moriconi, que me desculpem os bons se ele é um desses seres famosos, mas que ele ainda não pousou no meu mundo e por aqui não fez fama, defendo eu. Depois achei de muito bom gosto e charme a divisão do livro, o que já me fez esquecer Italo, olhares de esquina, potencial romance, sua esquisitice e ele ficando para trás na minha vida, só apontou assim para uma sala onde eu encontrei gente, e não macacos. Uma das maiores amarguras da minha vida é sentir preguiça de alguém no meio de uma conversa, acontece sempre quando a pessoa é burra demais. Burrice é um negócio que não se tolera, corre-se de. Não é presunção, talvez seja, mas que eu estou fazendo demais senão sobreviver nesse mundo do jeito que eu entendo a sobrevivência? Cuidado você, que vai começar uma conversa comigo no meio da rua. Cuidado você, que vai puxar assunto comigo na rua e começa a falar pausado, que eu estou escutando poesia em absolutamente TUDO. Depois de voltar da Rússia notei como ficaram só os amigos que eu acabava ali no fim da noite sentada numa calçada jogando conversa fora. Esses se conservam, os outros, ditos colegas, passam pela sua vida, não deixam muitas impressões, parecem só figurantes de uma lembrança boa com outro alguém. As divisões do livro, enfim, são quatro. Começamos com a primeira: Abaixo os puristas. A procura da identidade nacional. É uma coisa que só desatei os nós esse ano: quando foi que o sentimento de ser brasileiro nasceu? Foi quando o hino entrou na escala certa? Foi quando os negros, sem querer, sambaram o samba? Foi quando o primeiro sorriso sem caso fez-se de dentes? Porque como eu disse (tento me citar não soando egocêntrica e isso não funciona), a minha condição de brasileiro é pendente e hoje eu não estou nem pro presidente... Ah, difícil é achar o momento-fio para isso, identidade nacinal é uma coisa que se constrói, os elementos vão se juntando em um centro magnético e depois as pessoas aparecem e tomam aquilo para si. Leva-se séculos. E quem discordar, que jogue a primeira pedra quem achar que o Kosovo já tem uma identidade nacional. Aliar costumes, tradição, cultura, velocidade em que se anda na rua, açucar ou não no café e se bebe-se café em geral, literatura nessa tal identidade com o simples nome de um país e uma nova bandeira não é coisa de tetris e não é simples. Que me chamem de exagerada, mas um nome e uma bandeira despertam muito do tal sentimento nacional, quando ainda encontra-se a mercê desses, é difícil até de usar a palavra patriota.

Brasil, país em que pode se absorver boa poesia diariamente, disse Italo, e de súbito, por uma única idéia em comum, já não éramos tão estranhos e eu já não o condenava pela sua estranheza nesse meu mundo. Agora vamos cruzar a primeira parte, abaixo os puristas. O Brasil, com seus sotaques e sua entonação própria, achou em si uma poesia que ia parelala à portuguesa, a européia, não era a "brasiliense", agora era brasileira. Isso aconteceu há menos tempo do que todo mundo pode estar supondo: terceira década do século XX. Me resta somente concluir que a nossa identidade nacional, como santa colônia e filhos das américas e do novo mundo, é tão nova que nossos avós foram lá, sim, experimentos dessa transição.

Mundo mundo vasto mundo ,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução
Mundo mundo vasto mundo
mais vasto é meu coração
- Drummond


Passamos por Ismália, Augusto dos Anjos, que eu descobri que divide a mesma data de aniversário comigo. Aperto de mão, jovem. E a esse ponto dessa publicação, vou me sentindo meio mal por estar marcando um livro com um coaster da Brahma (sofrendo por ter esquecido isso em português falando sobre literatura). Descobri o fato sobre o Augusto procurando o local de nascimento na internet de cada autor do livro, afinal, um poeta sempre vai escrever sobre reminiscências de infância e sobre as paisagens nelas contidas, e sei que não é surpresa, minha gente, mas ninguém veio do Acre.

A segunda parte, educação sentimental, ganha um ritmo de bossa nova e cara de mpb, encontrei Vinicius, Cecília, Mario e gente que meio giving a fuck pra métrica, só pro ritmo, se é que me entendem, também não ligo se não entenderam. Desse ponto passo mais a gostar da poesia, um ser livre, sem estar tão presa em sonetos. Um poema precisa só de ritmo e passada, ou uma simples seqüência de imagens, por isso gosto das coisas do Buk, que sem nenhuma classificação acadêmica eu chamo de poesia de rua.

Por isso é que os poemas têm ritmo
- para que possas profundamente respirar
Quem faz um poema salva um afogado
- Mario Quintana


A terceira parte é o cânone brasileiro, que é o climax, o gol, o orgasmo, o que seja. Drummond, que é um ser ímpar, ainda aparece por aqui. Encontra-se em todas as quatro partes do livro. Como quem não quer nada, como quem cabe em qualquer roupa, como quem é onipresente e ubiquo, usando os sinônimos só para se reforçar. Gostei muito do "Serventia das idéias fixas" do João Cabral de Melo Neto, em que ele relaciona muito bem as palavras faca, relógio, bala, meio como as coisas que matam.

Ninguém do próprio corpo
poderá retirá-la
não importa se é bala
nem se é relógio ou faca.


E o mais célebre verso do Ferreira Gullar


azul
teu cu


e


que a vida
passava por sobre nós,
de avião.


Que homem.

A quarta parte, "fragmentos de um discurso vertiginoso", o sentimento nacional já existe como se sempre tivesse estado lá de forma que a maior preocupação dos poetas que apareceram nessa última parte é falar sobre si mesmos. Como o cearense que ignora a praia que sempre esteve lá, falou a cearense de coração (que não ignora mais a praia). Eles são agora sobre gerações. Sobre qualquer coisa que cerque qualquer coisa. O Brasil, deixa a ilha Brasil... Affonso Ávila, com "Antifamília", não poderia ter usado melhor a antítese. Em trechos intercalados ele descrevia a tal da família mineira, e no próximo, o oposto disso, usando de semelhanças entre os versos.

a demagogia do presidente
as orgias do presidente)
[...]
o ar degas do deputado
as adegas do deputado)


Já nem quero começar a falar de política. Deixa o Affonso pra lá, que o fantasma da louca da Dilma vem me assombrando. Essa parte do livro, além de ter o poema do Augusto dos campos, "LUXO", em tamanho real que desdobra e sái do livro, tem um tal poema de um tal de Paulo Henriques Britto, que era meu desconhecido e me ganhou dez minutinhos de reflexão com "A geração paissandu", que já postei aqui, em algum post não muito longe desse, ou googlem isso, dedos podres.

aí chegou esta hora
que as gerações já sabem de tudo
e é péssimo
ter pertencido à geração do meio
[...]
e sabendo que apesar de amaldiçoados
éramos todos inocentes
- Jorge Wanderley


Ao mesmo tempo que gente que eu nunca havia ouvido falar vai aparecendo, fico feliz em saber que o potencial poético do Brasil não se depositou e acabou totalmente naqueles que chamamos pelo primeiro nome como Vinicius, Carlos, Mario. O colosso ainda rola. O último poema, de ótimo tom, é "Guardar", de Antonio Cicero, nada melhor do que guardar e sem ansiedade ter que aguardar que a poesia brasileira ofereça tanto mais, que ela se acumule em cima daquela tentativa de achar uma identidade, que ela passe mesmo depois disso a priorizar as coisas pequenas e fazer poesia sem métrica e curta assim e só por fazer e por necessidade e pra não virar úlcera. O português, ainda mais com a entonação cantada brasileira, que até meus amigos além-mar ao escutar a versão brasileira e a portuguesa falam que o brasileiro é mais bonito e rítmico. Desculpa Portugal, mas eu gosto das curvas do meu português. E ele nasceu tarde e só nasceu pra isso: pra virar poema. Pra guardar.

Pode parecer loucura, mas o que faltou nesse livro nem faltou por direito pátrio, faltou Camões! Mas que eu tenho certeza que está tão adotado pelos brasileiros que já está mesmo é no ar, não precisa entrar no livro, esse bom português. Viu, Portugal, já vou me redimindo, assim assim.

Não vou postar mais "Pão com açucar" hoje, tenho que revisar, aliás, tenho que levantar daqui da minha mesinha de café da manhã e pegar meu hard drive que o rascunho está lá e isso é tanto movimento e o dia já está acabando e já são 23:21, está na minha hora de pegar o telescópio, dizer boa noite às estrelas, ou eu sento aqui com o Vincent (não sei se é lançamento da Pocket, mas peguei mais um da série com cartas dele e venho andado toda melancólica absorvendo-o), ou assistir um filme daquela lista da revista francesa que eu já sei pronunciar o nome ou ler os Drangonball relançados em oito tons. Meu francês anda assim sem pretensão, mas sendo mais uma desculpa para que eu adie o espanhol, ele vem tão bem vindo e bem pretencioso. Deixemos o Pão com Açucar para Domingo, para completar uma semana direitinho. E entre coisas que vêm me surpreendendo e apaziguando a alma: cinema nacional. Você que pagou ontem uma entrada para ver mais um hollywoodiano, perdeu. Não perca mais. Não quero entrar no assunto cinema porque não vou sair tão fácil, então é melhor me reservar só pra isso, mas dica de despedida e última hora: baixar indicados e vencedores do Festival de Berlin, só para ir além mesmo do cinema brasileiro e do hollywoodiano.


Fiquem com a poesia, não com a boa noite, fria e sem Deus, porque não sei você, meu caro, mas eu prefiro quem gritou a independência da poesia brasileira a um grito de independência do Brasil que foi só um grito, o grito da poesia foi gritado e está sendo gritado por muitos, alguns dos quais a gente trata como amigo como se conhecesse e penetrasse a alma, alguns outros vamos conhecendo e que nos surpreendem, poesia é questão de hospitalidade, há sempre um espaço, e viva a Independência da Poesia Brasileira, a que Dom Pedro II não gritou e foi gritada por esses e outros não citados aqui, sem vocês teríamos morrido todos afogados, agora salvos pela poesia, e em época de eleição, nada melhor que se afogar em poesia, vai, mergulha, agora. Pontuo.

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