Pular para o conteúdo principal

Canecas


I've got duct tape all around my heart
'Cause I've got a new feeling every thirty seconds

Acabei de levantar sem fome, apenas repetindo que acho que deveria comer porque comer é importante, as pessoas fazem isso o tempo inteiro, em voz alta, como se a mensagem fosse ter mais efeito. Talvez seja porque elas precisem. O sentimento de acordar num domingo não querendo sua própria companhia, pegar o violão ao invés de um café e se irritar por não querer ouvir sua voz, não querer uma conversa. A sala se enchia de livros do Bukowski, Clarice e as coisas que eu achava que me definiam, que eu voltei a dar crédito depois de não ter treze anos por muito tempo. Acho que o que me irritava mesmo era saber o que eu queria agora. Eu não sou uma suicida, acho besta. Mas às vezes me dá uma preguiça de viver que eu acordo num domingo desses e é chato demais. Só não é besta. Então de madrugada pra manhã eu pensei que ainda bem que eu escolhi essa profissão que vai tomar cento e trinta por cento do meu tempo porque assim não sobra muito com o que se preocupar, que eu tenho essas dez cadeiras e que não vai ser tranquilo mas pelo menos eu encho a cabeça, que agora eu sei o que me irritava, qual era essa falta que me irritava. Porque quando indiferença é tudo o que sobra então isso é um problema. Acho que essa coisa de ter a possibilidade em mãos de amar alguém de novo foi realmente emocionante, e ver a possibilidade se esvairecer foi uma decepção maior do que se eu perdesse o amor que nem teve vida o suficiente para existir em toda a sua forma. Há amor, não há quem amar. Então senti falta de você também naquele aeroporto e aquele chão e nós dois esperando uma mensagem superior, uma profecia em relação ao meu vôo. Senti falta de outros amores que duraram pra sempre. Quase tive um momento. Mas pelo menos eu sei que eu preciso de uma coisa dessas, de que é isso que eu quero, e que não é um assalto de banco, uma coisa bem fodida, como disse o Buk. E se isso é tão natural. Foi aí que eu olhei para a pilha de louças com um recado de não more só nunca e lave isso. E eu questionei. Por que lavar? A sujeira é o caminho natural das coisas, até das efêmeras. Lutar contra o natural, só nesse aspecto? As pessoas ficam procurando sua natureza o tempo inteiro. Daí eu fui lavar a louça. Uma foto na geladeira me lembrava que era domingo e que era dia dos pais. E a indiferença de novo. Essa caneca que eu estou lavando agora conta história, e as outras também. Existe uma biografia inteira na linguagem das canecas. Então eu agradeci ali ao som de água corrente obrigada aos que foram mais que pais, que me ajudaram a crescer (pensei na Maísa e sorri com a caneca de Londres na mão) que piegas que soou e eu me reprimi porque ser piegas é pior que ser besta. Tentando levar Iracema a sério, voltei pro meu quarto, deitei na rede e vi como ela drogava Martim. Aquilo me deu um sono e é por isso que eu dormi, com os verdes mares nadando no meu peito.

Vim, como todo mundo,
do quarto escuro da infância,
mundo de coisas e de ânsias indecifráveis,
de só desejo e repulsa.
Cresci com a pressa de sempre.

Fui jovem, com a sede de todos,
em tempo de seco fascismo.
Por isso não tive pátria, só discos.
Amei, como todos pensam.

Troquei carícias cegas nos cinemas,
li todos os livros, acreditei
em quase tudo por ao menos um minuto,
provei do que pintou, adolesci.

Vi tudo que vi, entendi como pude.
Depois, como de direito,
endureci. Agora a minha boca
não arde tanto de sede.
As minhas mãos é que coçam –
Vontade de destilar
depressa, antes que esfrie,
esse caldo morno da vida.


Pontuo.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

RIANNE (eu,ich, ja, I, yo), A COLONIZADORA.

Toda criança normal tem como lembrança normal algum parque ou algo extremamente colorido. A primeira lembrança que eu tenho é de um corredor de hotel, uma janela no fim. Depois... Perguntaram-me em New Jersey se o que eu falava era brasileiro ou espanhol, peguei a bicicleta, achei graça e ralei o joelho - não exatamente nessa ordem, mas nada que me impedisse de ir comprar comida chinesa em caixinha do outro lado da rua, eu sempre kept the creeps quanto à vendedora, ela era alta demais pra uma chinesa. Foi nessa época que criei um certo trauma em relação a indianos, o acento indiano é um negócio a se discutir - parei de comer dunkin donuts. Era uma máfia, em todo Dunkin Donut e posto de gasolina só se trabalhava indiano. Admito que só fazia ESL pra perder aula, mas o mundo inteiro precisava sentar em um teatro e ver a cara da Miss Rudek, quando eu, o Hupert (chinês), e a Katrina (mexicana) passamos a ser crianças sem línguas maternas: Havíamos aprendido duas ao mesmo tempo, com um empur

Purple crutches

“I wish you a great future”, then she gave me her hand - similar to a peace offering. She had a simple case of a stomach ulcer, I had patched her up around 3am in our ER, I had simply asked her if there had been any unusual stress in her life lately, to which she replied “I had kids too early, I wish I had done more with my life”. I could feel the courage-fuel she was burning while saying these words. I didn’t give her any speech. Just admiration, and a small part of me smirked at my childhood hoping my mother had realized that sooner. Well, she didn’t. I made my life’s mission to become exactly the opposite of her. As I typed in another ER report for the 27-year-old sitting next to me, I came to an uncomfortable realization: how not often patients wish us anything at all, like we’re not people, like we don’t have feelings. She had wished me as much as a great future - that’s a lot. I hope she knows that’s exactly what I wished her, too. Truth is, I felt like my emotional energy could

Malibu, 2025.

Malibu, 2025. Note to self. It had been already snowing. Awfully early to, but it was Moscow. Normally, after the first snow I’d meet Seda and she would complain about every single aspect of her life and connect it to the snow fall and the coming winter. Now, however, it was just me. I remember I had been looking for emotional sustainability. I, yet, couldn’t find the equivalent of “green, sustainable” for feelings. I was not sure either it was a color. Oh. Right. It was exac tly the things that happened after we graduated that defined us. I died my hair blond, took off to Vienna to meet old affairs and taste the Austrian cuisine (all of it, but I specialized on schnitzels and apfelstrudels). Martin moved with Masha and Domenico to the countryside, after which they became gypsies in the alps. Seda took off with Gennady to the United States in the pursuit of happiness according to the American constitution. I became a vegan after that, but remained blond. Seda ended up working tem