Pular para o conteúdo principal

Girassóis de Cardiff



Abençoei o início do dia com café: não havia rezado antes de dormir, não o fazia há sete anos. Nenhum remorso, nenhuma dívida.

Tomei o primeiro gole e olhei pela janela: o Sol brilhava debaixo dos meus doze girassóis. Arrumei a bolsa e embarquei no portão B para a realidade, enquanto o elevador descia, a realidade ia me fazendo lembretes. Lembrentes de um mundo. Não, eu nunca fui do tipo Bono Vox/Angelina Jolie que ajuda a Africa, muito pelo contrário, aliás, nem sei se a minha opnião dá cadeia. De qualquer forma, o lembrete não era que as pessoas tinham fome, não trabalhavam ou se trabalhavam, era em regime escravo numa fábrica de sapatos nas Filipinas; o lembrete, o que eu queria ver, estava estampado em papel post-it na testa de todos: a auto-convivencia, a hipocrisia, a submissão, a ambição cega por alguma coisa que não se sabe ao certo, que já deveria ter sido alcançada dez mil vezes...

Finalmente ganho a rua.

O mundo ainda parecia estar na sola do meu pé, quanto a isso, ele tentava me chatear com o vento - assanhando meus cabelos - em vão. Nem o pior dos furacões realizaria esta proeza.

Parei na padaria para comprar outro café. Sim, eu precisava de outra dose de realidade. Com adoçante, moça.

Então finalmente desceu: mais um gole de realidade e eu não iria agüentar... O som da guerra ainda tocava, e eu me sentia ridícula por ter vivido nos Estados Unidos quando a guerra começou, e o melhor que eu fiz foi mudar o canal.

As pessoas ainda me cercavam e eu sabia que apesar do comportamente previsível de todos, apesar do combustível da vida ser a morte, era sobre isso tudo que eu sempre escrevi durante a vida. Foram sempre os humanos que eu quis decifrar, para de alguma forma, chegar até mim. Inútil.

Então eu planto alguns girassóis esperando que eles me mostrem a direção ou me deixem mais perto do Sol; mas só sabem sorrir e esticar o pescoço para o Sol, e apesar de saber que esticam-se para o Leste... De que me basta o Leste? Eu já estive no Norte, no Sul, no Oeste, além do Norte... E o Leste não me diz nada. Uma fileira de doze girassóis no meu quintal gritando "Leste!" não me leva a nada. Ainda não sei a direção que se deve tomar para entender as pessoas. Apenas que, quem eu sou, foi o que eu fiz comigo e que sou somente esse bando de cidades.

Ah, acho que a melhor ação que eu vou conseguir fazer na vida é doar meu corpo para a ciência, e isso nem vai ser em vida, vai ser em morte. Ah, mas eu gosto desse ser humano dentro de mim, é forte, e eu não preciso de mais nada.

Mais um reveillon assim e vai ser demais, pensei.

Paguei.

Saí.

Preferi esquecer o mundo. Ignorância é alegria, é confete, é carnaval. Mas de vez em quando é preciso tomar um ou dois goles de realidade, porque é impossível vomitar um mundo com tanto em volta.

Enquanto o café deslizava pela minha garganta, em algum lugar de Oxford alguém tentava descobrir a cura da Aids. Apesar da Aids e da melodia da guerra, eu ainda tinha meus girassóis.

Inércia - a primeira propriedade de tudo. O mundo era inerte, era quadrado, e pela primeira vez discordei com Galileu e Newton - Sabe, parceiro, os astros são bonitos demais pra estarem a somente anos luz da Terra, um lugar tão feio, e se a gravidade realmente está me segurando aqui, porque ela não me impediu de pensar tão alto?

Só os girassóis se mechem nesse mundo inerte, Galileu, o resto é sobrevivência ou mitologia.

E então minha sorte ficou superdensa, imitando o chumbo, de forma que eu me afundei em mim, sem resistência.

Depois, Leste.

Depois, mais nada.




Moscow, depois Cardiff - certeza da vida.


--------------------

I'm standing in front of you, I'm a million miles away, in one straight line. Hello, how do I do, how do I keep going, who am I. Who am I: man, I did it to myself, so stop looking at me that way, I'm not the answer, I'll be your anchor. I won't pretend I love living straight, won't forget myself so soon, it's who I am. I'm all those cities inside me, yet I go to the country to find myself; crawl back to the city to lose myself again, under lights this joke is wearing thin. Well, it's easy to be a winner when I don't know what I've lost. It's easy to be a believer in myself. Maybe I'll fall, maybe I'll fly. Yet it's so hard to fly if we don't believe all the time: it's just one way to catch the sun, to find out who I am - I kinda leave it in the air. Well, man, we've had one hell of a ride, go chase your dragon and I'll chase mine. Find yourself (a compass), shall be fine.

--------------------

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

RIANNE (eu,ich, ja, I, yo), A COLONIZADORA.

Toda criança normal tem como lembrança normal algum parque ou algo extremamente colorido. A primeira lembrança que eu tenho é de um corredor de hotel, uma janela no fim. Depois... Perguntaram-me em New Jersey se o que eu falava era brasileiro ou espanhol, peguei a bicicleta, achei graça e ralei o joelho - não exatamente nessa ordem, mas nada que me impedisse de ir comprar comida chinesa em caixinha do outro lado da rua, eu sempre kept the creeps quanto à vendedora, ela era alta demais pra uma chinesa. Foi nessa época que criei um certo trauma em relação a indianos, o acento indiano é um negócio a se discutir - parei de comer dunkin donuts. Era uma máfia, em todo Dunkin Donut e posto de gasolina só se trabalhava indiano. Admito que só fazia ESL pra perder aula, mas o mundo inteiro precisava sentar em um teatro e ver a cara da Miss Rudek, quando eu, o Hupert (chinês), e a Katrina (mexicana) passamos a ser crianças sem línguas maternas: Havíamos aprendido duas ao mesmo tempo, com um empur

Purple crutches

“I wish you a great future”, then she gave me her hand - similar to a peace offering. She had a simple case of a stomach ulcer, I had patched her up around 3am in our ER, I had simply asked her if there had been any unusual stress in her life lately, to which she replied “I had kids too early, I wish I had done more with my life”. I could feel the courage-fuel she was burning while saying these words. I didn’t give her any speech. Just admiration, and a small part of me smirked at my childhood hoping my mother had realized that sooner. Well, she didn’t. I made my life’s mission to become exactly the opposite of her. As I typed in another ER report for the 27-year-old sitting next to me, I came to an uncomfortable realization: how not often patients wish us anything at all, like we’re not people, like we don’t have feelings. She had wished me as much as a great future - that’s a lot. I hope she knows that’s exactly what I wished her, too. Truth is, I felt like my emotional energy could

Malibu, 2025.

Malibu, 2025. Note to self. It had been already snowing. Awfully early to, but it was Moscow. Normally, after the first snow I’d meet Seda and she would complain about every single aspect of her life and connect it to the snow fall and the coming winter. Now, however, it was just me. I remember I had been looking for emotional sustainability. I, yet, couldn’t find the equivalent of “green, sustainable” for feelings. I was not sure either it was a color. Oh. Right. It was exac tly the things that happened after we graduated that defined us. I died my hair blond, took off to Vienna to meet old affairs and taste the Austrian cuisine (all of it, but I specialized on schnitzels and apfelstrudels). Martin moved with Masha and Domenico to the countryside, after which they became gypsies in the alps. Seda took off with Gennady to the United States in the pursuit of happiness according to the American constitution. I became a vegan after that, but remained blond. Seda ended up working tem