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Cega por opção

[entrada do meu diário devidamente censurada quanto a portinholas da minha mente que são inacessíveis a todo mundo]

Hoje eu sentei com o José Saramago, uma maça cortada em um potinho e comecei a comer os pedaços de maçã ao passo que as páginas iam ficando para trás, também. Não que José Saramago tenha gosto de maçã, mas é engraçado ver como a maçã ganha outro sabor quando se lê junto. É a imersão que o livro causa dando tempero às coisas. Enfim. Há alguns meses, desde o Érico Veríssimo cair na minha estante que eu não dizia Enfim ao achar um autor decente, e eu disse Enfim e respirei logo em seguida, como se eu tivesse contido ar esse tempo inteiro. 


Senta um menino do meu lado, um conhecido, de quando eu ainda tinha algum interesse pelo mundo e saía todos os finais de semana, achava que as luzes da noite me eram suficientes, que eu achava que as emoções se encontravam num poço sem fim, que eu as teria sempre renovadas pra sempre, até tudo me cair na mesmice e eu, como sempe, me obrigar a ir além, além do que eu era. Não consigo ser nada senão mutável, é verdade. Então ele diz oi e pergunta por que eu estou só. Pensei em responder por opção, o que era muito verdade, ou curtindo a solidão, mergulhando num momento epifânico que você acaba de estragar. Mas eu estou nesse processo de não ser tão apática mais, não que esteja funcionando, as minhas expressões faciais não escondem nada, mas não é que eu ache ruim, é que as pessoas não entendem que não é apatia, é só que elas na maioria das vezes são previsíveis demais. Preguiça de socializar, respondi, finalmente. Ele falou sobre como ele não sabia o que queria da vida, e eu pensei em como pessoas sem direção me dão pena, e consenti que eu sou mesmo muito ácida. É preciso ter um foco, e fui empurrando a conversa com a barriga, fiz até um gesto com as mãos. Então depois de muita small talk, ele pergunta qual o problema em socializar, e eu pensei em responder sobre a previsibilidade que o processo da amizade banal se tornou, ou como eu sei como todo mundo está representando o papel e é um filme ruim. Não lembro o que eu respondi, mas acho que deixei a acidez vazar e ele disse que eu era estranha. Talvez eu não siga o padrão, retruquei. E me gastam o tempo e me atrapalham a leitura e esperam simpatia? Não. Eu sei que a minha praticidade pode ter se mutado (?) para essa acidez, mas eu gosto muito do que eu me tornei, passei a manhã pondo as coisas na balança, comendo fibras e Mucilon. Perguntei por onde andavam as pessoas que já estiveram na minha vida e longe foi o que eu consegui obter, de que adianta, já fizeram o que tinham de fazer por aqui, ou devastam ou plantam girassóis, simples

Quis continuar a ler o livro, mas quando eu entro nessas reflexões é difícil me tirar do meu egoísmo e a minha mania de ser introspectiva e hermética.

Cheguei em casa, a imagem do cavalo do quadro que fez cegar um dos cegos da camarata da mulher do médico apareceu na minha cabeça: narinas mais alargadas, olhos com algo de humano (só por que me transmitiam alguma expressão facial, não acredito em expressões faciais de cavalo, só que cachorros sorriem), a pelagem marrom, um desespero, que eu não sei descrever, encontro-me muito pobre das palavras quando cito mentalmente grandes escritores, vejo que tenho que andar muito ainda e não tenho pressa. Então eu fechei os olhos e vi tudo preto, a não ser por uma coisa rosa que ficava rodando, lembrei que a cortina não estava fechada e chateada tornei a olhos semi-cerrados realizar a labuta de fechar a desgraçada, que aquela vista não me apetecia mais o apetite, mas me enjoava, como um sorriso antes brilhoso e branco, daqueles da tevê, torna-se amarelado. Abri os olhos de um jeito certo, não tinha outra, não tinha nada de novo, sequer a música do vento era um tantinho diferente. Fechei a cortina e tornei a fechar os olhos: antes ser cega por opção, que a lucidez pouco me basta, aqui dentro de mim tenho cavalos desesperados correndo por campos de girassóis e isso me apetece bastante, o mundo se torna tão chato quando se descobre que há um tão mais interessante dentro de mim, ah, quanto egoísmo, e disso eu não me largo, do meu egoísmo eu me entendo.

Continuei a cegueira, priorizando os outros sentidos e dormi a tarde inteira.

Em terra de cegos quem tem olho é rei, e dentro de mim (essa bagunça de fobias), como éramos só eu, o cavalo, os girassóis e a cadeira sexagenária da minha mente, proclamei a monarquia com um tintilar de elegância. Talvez esteja ficando louca, louca e cega, mas bem que o sofá da loucura é muito macio e aconchegante, difícil de se despedir...

Puxei a cortina de volta.

"A cidada ainda estava ali"...

Vi a chuva cair e me despedi de cada gota, sabia que nunca mais as reecontraria, que eu só as veria por aquele momento, nunca mais as vou ver, repeti, então sim, estou ficando cega, e quanto a loucura, vai se sobrevivendo, vai se sobrevivendo...

É muito conveniente ser cega em uma terra de reis (muita ironia para a última palavra).

Comentários

Letícia disse…
Puro Ensaio sobre a cegueira.
Imagina isso que você tá sentindo agora só que no meu lugar e viajando pela europa! Tinha dias que eu chegava no apartamento e só queria fechar os olhos e fechá-los e dormir e domir e finalmente ir além daquilo tudo, redescobrir o meu mundinho, o viver pra ele e morrer nele. Quando a lucidez chegou foi um baque grande... Se prepare e como diz o subtítulo do filme, sua visão do mundo nunca mais será a mesma.

Teu aniversário é dia 20 né?
Beijos (tou convidada?)

"A cidada ainda estava ali"

E a cidade fica, eles todos ficam e nós vamos embora.

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