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A escravidão reformulada

Ainda não havia Sol lá fora.

5 da manhã.

Repetia o pensamento: sono é luxo, café, café, café... Peguei os livros e levei para a cozinha. Bom dia, escápula, bom dia, esterno. Em três horas deveria sair para a aula e essa pilha de livros era o mais próximo que eu tinha de um café da manhã. Ninguém nunca falou que ser médico é uma tarefa fácil, aliás, é apenas uma redefinição da escravidão no século VXI, é uma redefinição da síndrome de Estocolmo só que com sequestradores que ainda não sabem que vão nos sequestrar e que nós também não conhecemos até cruzarem um corredor em uma maca.

Não sei se eles foram grandes homens, mas sei que fizeram grandes coisas, pensei nisso, enquanto olhava pela janela entre a décima primeira e décima segunda vértebra.

No mês de Agosto quando tive férias acabei de ver "The Tudors" e "José e Pilar" com um atraso da vida inteira, deu tempo de eu ir e voltar da Suécia e trabalhar na AFS para receber os novos oitenta intercambistas que começam a mesma estrada que eu começei há dois anos na Rússia, completando aniversário todo ano na mesma época, e tudo isso se juntou.

Então estava lá eu no aeroporto, exatamente dois anos depois, do outro lado da cerca. Recebi os alemães e os americanos e os levei para o hotel, pelas quantas eu sou apenas uma pessoa e há outras pessoas trabalhando para a AFS por aqui.

Foi uma semana de orientação com esses oitenta novos intercambistas e eu via cada cena se repetir, as mesmas perguntas, as mesmas dificuldades, a mesma cara de paisagem, a mesma reação com a comida russa (a pior).

E eu passara os últimos dez dias numa espécie de viagem do tempo, conversando, orientando, sendo DJ, falando cinco línguas ao mesmo tempo, dormindo pouco. Havia ainda tanta coisa que eu deveria ter dito a eles, tantos conselhos que eu deveria ter dado, mas tudo isso seria inútil, como diz a música que andava em repeat no meu ipod:

"Someday you might listen to what people have to say
Now you learn the hard way"

Poucos dias depois que voltei do trabalho, pelo final do mês, uma amiga italiana esteve em Moscou e depois de um ano nos vimos, nada havia mudado, as nossas piadas ainda eram em russo, nós amávamos a Praça Vermelha de um jeito como só se ama muito e sem explicação. E o mais importante é que nós concordávamos sem muitas delongas que aquele ano fora o ano da nossa vida, não foi o melhor, porque o melhor deve ser sempre o último, mas exatamente aquele ano de intercâmbio definiu tudo que veio depois. Existem esses anos-fio, se é que eles se podem chamar assim.

E foi exatamente aí, depois de Suécia, AFS, amigos de intercâmbio, que me reecontrei, em casa com calma, com Henrique VIII e Saramago, os dois, por acaso, falando sobre a força que é essa força do tempo.

Henrique VIII, digo Johnathan Rhys Meyers, disse:

"O tempo é a única virtude que um homem não pode recuperar";

Enquanto Saramago ao viver uma experiência quase-morte dizia "e se eu morrer agora, não escrevo mais livros, acabou-se".

Não sei se José Saramago e Henrique VIII foram grandes homens, e falo de caráter, mas sei que fizeram grandes coisas. É um erro achar que apenas homens de bom caráter realizam enormes conquistas, nem todo homem deve copiar o tão aclamado caráter de Jesus Cristo; e segundo, ninguém realmente conhece um homem por completo para poder, de fora, julgar-lhe o caráter, se nem ele sabe exatamente o que acontece ali dentro. Então restam apenas os atos, os livros, as árvores que ficam.

E agora que minhas aulas haviam voltado, das nove às oito da noite, em um dia comum toda manhã o assunto sempre vem a tona: quantas horas dormimos na noite passada e se vamos ter tempo ou não de almoçar hoje. As respostas variam de nada a 5 horas e para a segunda pergunta, uma risada com um tom de desespero. A verdade é que não nós incomodamos com nenhuma dessas renuncias, é possível viver qualquer coisa: intercâmbio na Rússia (e não precisa ser necessariamente a Rússia, intercâmbios são, em essência, os mesmos em todo o mundo), seis anos de medicina... Tendo as pessoas certas, sem sono, sem comer. E não temos absolutamente, Henrique, a sensação de estar perdendo tempo dedicando absolutamente todo o nosso dia e noite e madrugada ao trabalho de ser médico, e esse, Saramago, é o livro que a gente escolheu escrever. Imagina passar a vida inteira apaixonado por uma profissão que para quem vê de fora, não se imagina dedicando metade do tempo que nós botamos nisso tudo...

E nós sentávamos ali no hospital dividindo umas uvas que alguém tinha trazido, não importava e não importa da onde todos nós viemos, pessoas são só pessoas e são muito mais incríveis quando aprendemos a ignorar a nacionalidade de cada um. Já morei em tantos lugares e talvez eu realmente não tenha um senso de direção e não saiba andar pela rua da maioria dessas cidades, mas as pessoas são impossíveis de esquecer. Eu lembra de cada ruela e cada beco de cada conversa, cada defeito, cada qualidade. O caminho está nas pessoas, esqueçam o asfalto.

E nós fazíamos piadas estúpidas com termos de anatomia em latim, ríamos dos anos que vão vir, porque é tão óbvio que nós faremos tudo isso juntos - e é isso que importa, não o lugar, nacionalidade, mas sim as pessoas.

Pessoas são somente pessoas. Esse pensamento me deixa absolutamente contente, e a cada vez que penso nele, e a cada vez que ele se confirma. Sempre pessoas.

O telefone tocou às 2 da manhã no Domingo, daquele Sábado que começara às 5 da manhã, e ele me perguntava se eu ia dormir hoje. Olhei para os livros na minha frente e nós decidimos não estudar aquela madrugada de Domingo. Nos encontramos e vimos um documentário sobre uma cirurgia de separação de bebês siameses que durava vinte e três horas, cortamos rins de vacas que acharamos no supermercado 24h para procurar veias, se isso não era viver aquile que se ama, então nós não saberíamos qual era a sensação de ter escolhido a profissão certa se não fosse essa.

Passe o tempo que passar, o sono que não vai ser dormindo, mas a virtude de alguns homens é exatamente usar o seu tempo, a sua medíocre vidinha, para aquilo que se ama. A virtude não tem de ser exatamente o tempo, a virtude é a capacidade de fazermos decisões, a virtude é usar o tempo.

Nós pertencíamos ali, naquele Domingo de insônia por opção, eu não tinha dúvidas. Nós certamente não tínhamos todo o tempo do mundo, mas tínhamos uma vida inteira que queríamos viver, insone, se fosse o caso...

Pontuo.

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