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Ou quase exatamente


Ela não podia ir lá fora, algum ser desfigurado na noite passada havia personificado os medos de uma criança. Se era vermelho, não lembrava, a verdade é que o era e isso já corroia, independente da geometria e aquarela que viesse a adotar. Pôs-se a chorar, não sabia da onde vinha aquela vontade incontrolável de simplesmente berrar e resgatar gotinhas do mar. A verdade é que respirar ficava mais fácil. E ela repetia a sensação de medo dessa memória de nove anos atrás. Há pouco tempo fizera dezoito. Tudo parecia tão longe e tudo era uma eternidade, com barreiras, mas ela insistia em chamar aquela linhazinha do tempo que era a sua vida de eternidade com limites - fosse lá o que isso queria dizer.

Lembrou-se daquele dia longíquo num bairro de infância que pela mania humana de romantizar o passado, a recordava de uma infância com muita neve, rinite na primavera, a chinesa magra demais que vendia comida em caixinha, joelhos ralados e casuais furtos de batata frita da fábrica não muito longe, mas que valia a batata frita só pela aventura e a pequena sensação de estar ali em um grupo que furtava batata frita.

Hoje provara, envenenara-se, amara para sempre tantas vezes, chorara rios em uma quarta-feira de Sol e se pôs a nadar neles logo após. A questão é que o tempo, o limitador, havia a transformado, não em essência, a quantidade de matéria nela era a mesma, mas havia tudo se agregado de tal forma que apesar de ser composta pelas memórias imutáveis e cicatrizes no joelho, era outra ou apenas crescera, ou apenas chorava menos. Que agora quando se cortava pensava em hemoglobina e fatores coagulantes e não no imediatismo de como aquilo doía e sangrava, e simplesmente sangrava.

Em pensar que chorara pelos maus dos mundos - e imediatamente se corrigiu - as doenças crônicas do mundo, o imutável. Por dois segundos se pôs a apontar o dedo a igreja católica que ah, como era fácil propagar uma religião que personificava o bem e o mal, não exigia nenhum pensamento mais profundo de quem tinha a mínima vontade de acreditar em algo. Desde que o tempo é tempo o mundo vem vivendo sob as mesmas leis, e da gravidade e dos lirismos. É verdade que em constante mutação geométrica, mas nunca diminuindo-se ou aumentando, como escreveu Saramago "houve uma época de niilismo mais ou menos líricos, mais ou menos sangrentos, mas o que temos hoje pela frente é terrorismo puro e sangrento". E agora iria encontrá-lo, ajeitava o cachecol, calculava nós, em auto-piloto seguia pela porta para o seu lugar favorito da universidade, provavelmente os dois iriam querer deixar claro o quanto sentiam a falta um do outro, mas o sentimento era simplesmente repetido. Não, queria sim estar com ele, mas sentia falta do coração batendo forte e dos casuais dramas e dos rios de lágrimas numa quarta-feira. Havia se tornado uma pessoa tão compreensível que antes de explodir mastigava e digeria tudo dentro de si, e o resultado era apenas a maldita compreensão e praticamente nenhum drama - queria saber explodir de novo, quebrar móveis e socar pessoas.

O amor se repetia, tudo se repetia. Confissões de amor? Mecanismos contra o tédio (jurara que lera isso no dicionário, ou será que vivera isso demais e a nova definição sobrepusera a do dicionário? Camões se revirava). Vivera relativamente pouco e parecia que havia lido o livro da vida inteiro e agora apenas se punha a reler, não despertava as mesmas coisas, não chorava mais quando espetavam a mocinha com uma lança. Era apenas a lança, agora, e apenas a mocinha, que na verdade merecia a lança. E ficava ali do lado dele, ah, poderia numerá-los, o olhava nos olhos pensando que ele era lá o número trinta e dois, e tentando sentir tudo de novo, mas sabendo como seria a sensação de cada sentimento que estava por vir. Que na verdade amar não é questão de amor, mas questão de cronometragem, de querer as mesmas coisas e ter tempo. Se ele levantasse ali e agora e dissesse um adeus da forma mais indiferente possível, ela não choraria e apenas replicaria: adeus, trinta e dois.

Crescer, pensou, é aprender a parar de chorar, é andar em direção a total petrificação. Que as crianças choram e se livram de toda a toxina das gentes e das coisas, mas como entendem pouco sobre o tempo e a duração da vida e as coisas que devemos ser no meio disso tudo, não se esforçam em manter o hábito, até que quando sabemos muito, vivemos demais, não nos repetimos a chorar pelas mesmas coisas, é aí que paramos inteiramente de funcionar, como se aquela aguinha do mar fosse o combustível, não deixasse enferrujar. E finalmente nos petrificamos, mortos, viramos pedras.

Pensar que antes tinha essa visão da sua própríssima versão de si mesma adulta, e ela parecia mais esguia e fosca. Chegando finalmente a esse ponto da vida, onde ser adulta significa mais ou menos que da próxima vez que faltar leite em casa ele não vai ser comprado por mais ninguém senão você e usar o seu tempo livre para escovar os dentes, não imaginara que seria exatamente a mesma, a mesma que acordara a nove anos atrás com medo do vermelho. Morava no vermelho-Moscou agora, qual era a diferença? Não era mais esguia, sequer de qualquer forma fosca - essas idéias pareciam absurdamente pensadas. O eu-lírico ainda reagia a dentes de leão, só que sem tempo para assoprá-los, apenas para correr passando por eles atrasada para algum lugar. A sua versão adulta não era nada de incrível ou diferente ou mutado, era simplesmente ela. Nem sua voz havia mudado. Ainda cantava mal. Ainda se cortava o tempo inteiro. Ainda escutava a mesma banda de nove anos atrás. Ainda usava a mesma mochila que usara para ir para a primeira série - agora estava na faculdade. Ainda gostava de guardar fotos de pessoas queridas na carteira. Ainda lia livros de anatomia e preparava aparatos com sulfato de amônia - exceto que agora ela não lia "Como construir o seu próprio Frankeinstein, uma aventura" e sim "Anatomia e Fisiologia Humana", e não tinha mais o kit de química com o qual gostava de passar o recreio só, se queimava com ácidos numa escala diária. Ainda não gostava de pessoas e passava os intervalos não gostando e com pessoas selecionadas. Ainda gostava, na maior parte do tempo, de ficar só lendo ou de ir andar de bicicleta - exceto que agora não ia roubar batatas mas ia despretensiosamente ao parque que fica ao lado. Ainda era cheia de manias e obsessão com horários e anotações. Ainda queria quebrar móveis e socar pessoas, apenas havia direcionado isso para uma arte macial. Ainda não era católica e ainda amava uma mesa de natal. A única coisa que havia mudado a agregação do que a compunha fora amar demais.

Ainda era, quase exatamente, a mesma. Ainda vagava pelo vermelho. Ainda.

Continuou sentada olhando o prédio mais colorido do bairro junto a ele, o estádio na frente cheio de pessoas correndo e o campo de futebol... As cores da primavera... procurando novas cores, mas a aquarela se repetia e se repetia. Beijou-o, deitou a cabeça no seu ombro, fechou os olhos e criou uma nova variação de vermelho, simplesmente para se satisfazer e se convencer do contrário, que não crescera, que o amava como nunca havia amado ninguém. Sim, deveria ser isso.

Ou quase exatamente.

Sim, sim, sim...

Comentários

Alan Carfon disse…
Despretensiosamente saltei até aqui. E confesso ter ficado encantado com as palavras. Histórias apaixonantes.

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