Era um cemitério. Seus belos epitáfios cobertos de lodo e de negação, a canonização de quem morre é algo tão previsível quanto a morte em si. Passamos a ser os bons maridos, as amáveis esposas, o grande amigo. Quem diz é a pedra. A total ausência de vida debaixo de uma grama tão bem cuidada. Podada. Uniforme. Padronizada. No protocolo. Debaixo dela, Augusto dos Anjos sái das linhas e encontra motes. O interessante sobre o cemitério é que ele não é feito apenas de terceiros, é muito fácil achar partes e pedaços nossos perdidos por ali. Houve essa situação aqui no prédio, a mãe dessas meninas deixou-as mais o marido, ela que morreu de algo como um câncer, e toda vez que eles pegavam o elevador desde aquele dia eles recebiam os olhares, as condolências, que nada amenizam só reavivem, e saiam pela porta metálica carregando sua cauda da morte, que era mais visível para os outros que qualquer coisa. Nunca fui amiga das filhas. Nós nunca seríamos amigas. Eu era estranha demais no colégio para que isso acontecesse. Mas talvez isso tenha sido ótimo. Eu nunca quis reparar nas suas caudas de morte, achava-as fortes agora, sobreviventes, pelos quantos pedaços delas haviam sido enterrados com a mãe. Ser um zumbi não é uma escolha. Ontem no Dia dos Finados, e pouco me importa por que diabos esse dia existe, se a energia me parece a mesma, se as estações não mudam e se o Sol se põe na mesma hora. Eu pensei em pessoas que morreram. Não as que morreram de fato. Mas as que morreram porque passei a não conhecê-las mais. E eu não sofria mais as suas mortes porque eu sabia exatamente que elas não voltariam. E outras pessoas que por trapaça do destino continuam vivas, mas poderiam muito bem estar mortas para que não tivessem ficado para ver o colosso todo rolar na direção errada. Essa pessoa que definiu a história da minha vida. E que me dói, apesar de eu estar anestesiada há treze anos. Eu ri, e foi um riso frustrado, quando me falaram que eu nunca tive grandes problemas. Ás vezes as pessoas te conhecem e não sabem a história que a vida te proporcionou, e te julgam só pelo o que elas viram, e não as culpo, veja bem, não as culpo. Mas existem pessoas e pessoas. Eu creio que qualquer problema pode deixar uma bela cratera ou só um arranhão, e isso nós meio que controlamos. Mas quando se tem cinco anos não se sabe nada disso e a cratera fica simplesmente lá e só depois de anos você entende o que diabos é uma cratera. Então eu ri, porque aparentemente eu nunca tinha tido grandes problemas. Problema, aliás, que é palavra que é escrita do mesmo jeito em todas as línguas que eu consigo falar. Problema, problem, das Problem, проблема. Não sei se isso implica que somos todos humanos e os sentimos do mesmo jeito, e eu não quero falar realmente da unidade humana e de como pouco importa que falamos línguas diferentes, vamos dar as mãos e convencer os grandes líderes a enterrar suas bombas atômicas. Felicidade é um assunto overrated. Tão overrated que escrevi sobre isso sem no auto-piloto na segunda-feira. E o pior é saber que as pessoas vão aprovar o que escrevi quando lerem só porque é exatamente o que elas querem ler. Era algo sobre dinheiro e felicidade. Eu ia sobre algo como esse imperador chinês que criou a cédula e declarou sentença de morte àqueles que não acreditassem que poderiam comprar bens com um pedaço de papel. E se as coisas que desejamos são materiais, parte delas, então dinheiro é - uma - das formas de se sentir plenamente feliz. Mas vejamos os índios. Que não entendem a idéia de lucro. Felicidade para eles é medida em outra moeda. Projetamos a felicidade naquilo que nos ensinaram a valorizar, tivemos diferentes imperadores. Se eu acredito ou não que um Mac vai te fazer feliz, até acredito, mas por quanto tempo? Até as coisas não-materiais têm validade de felicidade. Amor vem e enjoa de você e pega o beco. A pergunta é até quando as coisas materiais ou não-materiais vão te fazer feliz, se todas elas estão programadas para durar um determinado tempo. Se me perguntarem, eu digo que felicidade é renovação, é reciclagem, é movimento. É também um sentimento tardio que é promovido pelo contraste, quando vimos que fomos felizes ou que somos muito felizes agora porque fomos tristes. Movimento e contraste. Se é um Mac ou amor que vai promover isso, bring it on. Então nesse Dia dos Finados projetei esse sentimento quanto as pessoas que eu já não conhecia e se tornaram estranhos, que vocês morreram e eu não vou ressucitá-las. E não falo de Jesus, nem do Goku. Eu pego o que eu tenho agora e junto os pedaços e espero que o curador ache que esse pedaço de arte valha a pena ser exposto e seja bonito mesmo, quase melancólico. No Dia dos Finados valorizei mais quem é vivo para mim. Quem, em vida, ainda se faz vivo. Pois há os que em vida, simplesmente morreram. E eu, licença, quero estar viva minha vida inteira, não estou por aí dando pedaços meus para serem enterrados. Eu sei que a grama está bonita e podado e estar debaixo dela é quase tentador, mas eu gosto mais das flores, e das árvores centenárias, que eu posso ver daqui do outro lado, que só nesse plano eu tenho a disposição suas sombras e seus cheiros. Estar vivo realmente vale a pena. Não precisa ser por ninguém. Pode ser pela árvore, pelas flores. Ou para simplesmente estabelecer o contraste da vida ali, em pé naquela grama, o contraste da morte e da vontade de viver. Os polos. E você que morreu, isso me dói o coração, mas doeria ainda mais dar continuidade a um luto ou cultivar a tal cauda da morte. E que você nunca mais vai ser o mesmo porque o combo de vocês não existe mais, porque a outra metade morreu, é verdade. Mas a gente não precisa esquecer para seguir em frente. Inevitavelmente, se aquilo persistir, nós crescemos em volta, e o importante é que crescemos e sobrevivemos. Somos esse monte de exoesqueleto e por algum truque da evolução não os descartamos, como memória imunológica. O que eu sei é que a cada patada, a casca fica mais dura. È por isso que nós tornamos pessoas melhores, esquecendo ou não. É patada sobre patada. É exoesqueleto sobre exoesqueleto. Eu não quero condolências. Apenas aceito as suas respectivas mortes e escolho ser o outro polo do contraste da vida. Por isso digo, era um cemitério, pois agora vejo somente a grama e as pedras já não falam comigo com seus epitáfios mentirosos porque sabem que não me convencem, eu sei todos os motivos que levaram a sua morte, e o epitáfio é como essa criança louca e positiva demais (talvez não precise vir de uma criança, apenas de uma pessoa com as tais características, quando a carapuça serve) que beira a cegueira da canonização, quando é muito óbvio que se fôssemos mesmo santos, nem teríamos que morrer para começo de história. Ou me deixam escrever as falhas junto às glorias no epitáfio, ou as pedras simplesmente pouco me interessam. Gosto das flores demais. Preciso escrever demais. Pontuo.
Era um cemitério. Seus belos epitáfios cobertos de lodo e de negação, a canonização de quem morre é algo tão previsível quanto a morte em si. Passamos a ser os bons maridos, as amáveis esposas, o grande amigo. Quem diz é a pedra. A total ausência de vida debaixo de uma grama tão bem cuidada. Podada. Uniforme. Padronizada. No protocolo. Debaixo dela, Augusto dos Anjos sái das linhas e encontra motes. O interessante sobre o cemitério é que ele não é feito apenas de terceiros, é muito fácil achar partes e pedaços nossos perdidos por ali. Houve essa situação aqui no prédio, a mãe dessas meninas deixou-as mais o marido, ela que morreu de algo como um câncer, e toda vez que eles pegavam o elevador desde aquele dia eles recebiam os olhares, as condolências, que nada amenizam só reavivem, e saiam pela porta metálica carregando sua cauda da morte, que era mais visível para os outros que qualquer coisa. Nunca fui amiga das filhas. Nós nunca seríamos amigas. Eu era estranha demais no colégio para que isso acontecesse. Mas talvez isso tenha sido ótimo. Eu nunca quis reparar nas suas caudas de morte, achava-as fortes agora, sobreviventes, pelos quantos pedaços delas haviam sido enterrados com a mãe. Ser um zumbi não é uma escolha. Ontem no Dia dos Finados, e pouco me importa por que diabos esse dia existe, se a energia me parece a mesma, se as estações não mudam e se o Sol se põe na mesma hora. Eu pensei em pessoas que morreram. Não as que morreram de fato. Mas as que morreram porque passei a não conhecê-las mais. E eu não sofria mais as suas mortes porque eu sabia exatamente que elas não voltariam. E outras pessoas que por trapaça do destino continuam vivas, mas poderiam muito bem estar mortas para que não tivessem ficado para ver o colosso todo rolar na direção errada. Essa pessoa que definiu a história da minha vida. E que me dói, apesar de eu estar anestesiada há treze anos. Eu ri, e foi um riso frustrado, quando me falaram que eu nunca tive grandes problemas. Ás vezes as pessoas te conhecem e não sabem a história que a vida te proporcionou, e te julgam só pelo o que elas viram, e não as culpo, veja bem, não as culpo. Mas existem pessoas e pessoas. Eu creio que qualquer problema pode deixar uma bela cratera ou só um arranhão, e isso nós meio que controlamos. Mas quando se tem cinco anos não se sabe nada disso e a cratera fica simplesmente lá e só depois de anos você entende o que diabos é uma cratera. Então eu ri, porque aparentemente eu nunca tinha tido grandes problemas. Problema, aliás, que é palavra que é escrita do mesmo jeito em todas as línguas que eu consigo falar. Problema, problem, das Problem, проблема. Não sei se isso implica que somos todos humanos e os sentimos do mesmo jeito, e eu não quero falar realmente da unidade humana e de como pouco importa que falamos línguas diferentes, vamos dar as mãos e convencer os grandes líderes a enterrar suas bombas atômicas. Felicidade é um assunto overrated. Tão overrated que escrevi sobre isso sem no auto-piloto na segunda-feira. E o pior é saber que as pessoas vão aprovar o que escrevi quando lerem só porque é exatamente o que elas querem ler. Era algo sobre dinheiro e felicidade. Eu ia sobre algo como esse imperador chinês que criou a cédula e declarou sentença de morte àqueles que não acreditassem que poderiam comprar bens com um pedaço de papel. E se as coisas que desejamos são materiais, parte delas, então dinheiro é - uma - das formas de se sentir plenamente feliz. Mas vejamos os índios. Que não entendem a idéia de lucro. Felicidade para eles é medida em outra moeda. Projetamos a felicidade naquilo que nos ensinaram a valorizar, tivemos diferentes imperadores. Se eu acredito ou não que um Mac vai te fazer feliz, até acredito, mas por quanto tempo? Até as coisas não-materiais têm validade de felicidade. Amor vem e enjoa de você e pega o beco. A pergunta é até quando as coisas materiais ou não-materiais vão te fazer feliz, se todas elas estão programadas para durar um determinado tempo. Se me perguntarem, eu digo que felicidade é renovação, é reciclagem, é movimento. É também um sentimento tardio que é promovido pelo contraste, quando vimos que fomos felizes ou que somos muito felizes agora porque fomos tristes. Movimento e contraste. Se é um Mac ou amor que vai promover isso, bring it on. Então nesse Dia dos Finados projetei esse sentimento quanto as pessoas que eu já não conhecia e se tornaram estranhos, que vocês morreram e eu não vou ressucitá-las. E não falo de Jesus, nem do Goku. Eu pego o que eu tenho agora e junto os pedaços e espero que o curador ache que esse pedaço de arte valha a pena ser exposto e seja bonito mesmo, quase melancólico. No Dia dos Finados valorizei mais quem é vivo para mim. Quem, em vida, ainda se faz vivo. Pois há os que em vida, simplesmente morreram. E eu, licença, quero estar viva minha vida inteira, não estou por aí dando pedaços meus para serem enterrados. Eu sei que a grama está bonita e podado e estar debaixo dela é quase tentador, mas eu gosto mais das flores, e das árvores centenárias, que eu posso ver daqui do outro lado, que só nesse plano eu tenho a disposição suas sombras e seus cheiros. Estar vivo realmente vale a pena. Não precisa ser por ninguém. Pode ser pela árvore, pelas flores. Ou para simplesmente estabelecer o contraste da vida ali, em pé naquela grama, o contraste da morte e da vontade de viver. Os polos. E você que morreu, isso me dói o coração, mas doeria ainda mais dar continuidade a um luto ou cultivar a tal cauda da morte. E que você nunca mais vai ser o mesmo porque o combo de vocês não existe mais, porque a outra metade morreu, é verdade. Mas a gente não precisa esquecer para seguir em frente. Inevitavelmente, se aquilo persistir, nós crescemos em volta, e o importante é que crescemos e sobrevivemos. Somos esse monte de exoesqueleto e por algum truque da evolução não os descartamos, como memória imunológica. O que eu sei é que a cada patada, a casca fica mais dura. È por isso que nós tornamos pessoas melhores, esquecendo ou não. É patada sobre patada. É exoesqueleto sobre exoesqueleto. Eu não quero condolências. Apenas aceito as suas respectivas mortes e escolho ser o outro polo do contraste da vida. Por isso digo, era um cemitério, pois agora vejo somente a grama e as pedras já não falam comigo com seus epitáfios mentirosos porque sabem que não me convencem, eu sei todos os motivos que levaram a sua morte, e o epitáfio é como essa criança louca e positiva demais (talvez não precise vir de uma criança, apenas de uma pessoa com as tais características, quando a carapuça serve) que beira a cegueira da canonização, quando é muito óbvio que se fôssemos mesmo santos, nem teríamos que morrer para começo de história. Ou me deixam escrever as falhas junto às glorias no epitáfio, ou as pedras simplesmente pouco me interessam. Gosto das flores demais. Preciso escrever demais. Pontuo.
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