Antes da palavra, existia o silêncio. A palavra foi criada no silêncio. A palavra é constantemente ameaçada pelo mesmo. Dedico esta publicação ao homem que salvou a palavra da mudez, porque a palavra dói, e ela sozinha não quer existir porque é árduo ser a palavra. Por isso nada a substitui. Ela simplesmente se empresta à gente, e enquanto faz isso nos ameaça todo o tempo: se me vou, vocês serão animais - diz - se me vou, vocês serão apenas o ser, e o ser sozinho não é nada, o ser precisa da extensão. A palavra não é de ninguém, ela sozinha é dela. A palavra se empresta, é diferente. Mas a palavra nunca se cala, ela é tão presente que é impossível deixar de sentir-la. Mas eu sei de uma coisa: eu prefiro toda a crueldade da palavra ao silêncio. O silêncio é nada, o silêncio nos estagna. O silêncio apaga línguas da face da terra, o silêncio apaga culturas: a palavra é a cultura, a palavra é toda a história. Sem a palavra, sobra o vão.
Eu tive um sonho terrível de que ele não existia. De que havia só uma casa branca, o mundo perdia a forma, porque a casa sem ele era incapaz de moldar o mundo. O mundo pende na palavra a cada segundo. E se ele se prestava a palavra, mais porque a palavra queria prestar-se a ele. Sem ele, o escritor, o mundo era disforme.
Ao acordar, perdi portanto os parâmetros de existir. A parede assim assim não se quebrava, o prédio assim assim não desaparecia, os lençóis da cama pareciam surreais, eu não sentia o meu corpo, era como se eu fosse apenas OLHOS. Portanto acordei sentindo saudades. Saudades de existir.
O nariz, entretanto, sangrava. Mas não me choquei: qual é o ser humano que se choca com sangue? Não há nada que se chocar ao admitir que somos esse ser, esse animal que somos. Afinal, eu acordara a primeira vez na vida em Portugal, desfiguradamente e sem certeza da própria existência durante aqueles estranhos minutos entre o dormir e o despertar, mas eu certamente estava em Portugal. Ou eu teria simplesmente imaginado o português? (afinal Portugal era o português, ou talvez fossem só vozes, talvez eu me imaginei).
Era o país do mundo que fora construído em cima de um pântano de palavras únicas que fora "forrado" com concreto para que o humano aí habite. Sim, em Portugal a palavra veio antes que o homem, a palavra falava sozinha, porque a palavra nascera no SILÊNCIO. Era o pântano do silêncio, sem pontas, sem perímetro.
Mas ele, ele que ameaçando não existir me despertou em desespero, ele ERGUEU a palavra. Quase me matou de medo (e por isso o sangue?) acordar a primeira vez em um lugar que não existia mais porque se não existisse a palavra, seria vão.
A casa branca (dos meus sonhos) erguia Portugal. A casa branca dele, erguida longe de tudo pela mania misantrópica (Ele SABIA que a palavra precisava do silêncio para nascer, por isso a ergueu longe).
E por isso hoje escrevo este relato de como me assombrou a idéia de um mundo sem as palavras que moldaram a língua portuguesa (ou seja o mundo inteiro).
E senti que finalmente despertei quando senti a presença do Elefante Salomão. Há vida porque Saramago está vivo como os mortos que NUNCA MORREM.
Voltei a dormir, o mundo poderia morrer por inteiro, mas enquanto existisse a palavra (e eu despertei brevemente só para confirmar-lo), todo o resto poderia explodir.
Sujei o travesseiro do hotel de sangue com uma gotinha, pontuando toda a perturbação.
Publicação dedicada ao escritor português José Saramago e à sua casa branca, onde aí morreu.
Comentários
Nossa!!!
Excelente escolha de postagem, adorei mesmo este artigo.
Boa noite, bjo
Gosto de não precisar entender ninguém de vez em quando,e se tiver que "falar" uma linguagem,que sejam notas musicais.